sexta-feira, 16 de março de 2012

O privilégio de se ter


A conversa era demorada. Daquelas em que não se sabe se vai ou fica, com certo receio em dar uma desculpa qualquer. Aquele velho homem parara ali, lado a lado comigo, sem me dar possibilidade de fuga. Lista extensa de coisas a fazer, uma enxurrada de pensamentos desordenados e o desejo iminente de ficar só. Pouco sei se para resolver ou concluir algo, ou somente estar. Acho sempre mais seguro permanecer largada em minhas próprias convicções.
Mas, voltando, ali estava o senhor sorridente. Chegou não sei como e se prostrou ao meu lado, enquanto eu bebericava meu terceiro copo de cerveja e rezava para que fosse embora. Indiferente ao meu desespero, ele se dedicou a narrar causas pessoais, as dele e as alheias, alternando sempre entre um comentário e outro. Pedindo atenção, dizia ser importante, me solicitou enorme esforço de concentração.
Ele falava bonito, confesso, parecia determinado a modificar algo em mim, mas o que é a beleza senão um detalhe despercebido aos olhos de quem não quer ver? Eu não via. Em certo momento, parei o olhar acima das fotografias e cartas que ele me estendeu, não sem antes pensar sobre a carência característica da velhice, provavelmente com um exemplo exato à minha frente, destinando a qualquer estranho partes tão íntimas do que foi e do que se tornou.
As imagens se espalhavam pela pequena mesa e, inevitavelmente, causaram curiosidade. Memórias em preto e branco, cartas amareladas pelo tempo, sorrisos que destoavam de era em era. Ele muito falou sobre seus amores, seus rancores, a odisséia da vida de qualquer homem que habita essa terra, ambiente insólito para quem procura amar.
Avistei um vulto que se destacava ao longe, rente a um automóvel parado. Seria seu filho? Ele me pareceu adivinhar os pensamentos ao responder: 'Meu funcionário, moça. Encarregado de me resgatar de minha falta de bom senso.' E riu. Um riso metade triste metade resignado. Um riso de saudade. Daqueles em que a nostalgia escapa por entre os suspiros, daqueles em que, sorrateiramente, deixava passar, me permitia ver, que a solidão que eu tanto almejava era exatamente a que ele possuía.
Pra lá de meia noite, já relutante, ele se despediu. Foi quando escutei: 'Não deixa-os ir sem que saibam do teu amor, do teu perdão, do teu remorso. Entrega o que te move e o que te contém. Não cala a voz do coração, grita! Não pára, age! Lembra-te: pouco sabemos dos nossos dias. Que a ninguém seja necessário conhecer a dor da perda para aprender a valorizar o privilégio de se ter.'
Fiquei sozinha ali, assimilando o peso daquelas palavras, digerindo a solidão a que me impunha. Desejando, pela primeira vez, gritar, agir e amar, intimamente torcendo para que não fosse tarde, religiosamente clamando por tempo.


Raquel Barroso

quinta-feira, 1 de março de 2012

F*ckin Intuition


Intuição é um negócio engraçado... A gente tenta ignorá-la e repete mentalmente: 'Nem vem, tá tudo lindo!', e desata a correr... E aí, do nada, estancamos surpresos. E lá vem a bendita... Toda cheia de razão, um risinho debochado no rosto, puxando nosso pezinho de volta à posição original: um passinho atrás, só pra garantir.


Raquel Barroso

Muita pressa, pouco tempo


Essa vida corre vestida de pressa... precipitando as escolhas, facilitando os equívocos. Pouco tempo. Insuficiente para descobrir quem somos. Entretanto, isso já não nos é vital... massificamo-nos. Nossos rostos, desejos, identidades. No fundo, iguais. Inertes; nenhuma busca, nenhuma esperança de que pudessemos ser diferentes. Já não somos tão complexos, especiais. Ainda desejamos as mesmas coisas, provocamos as mesmas guerras e motins, sustentamos as mesmas dúvidas e motivos que nada justificam. Ainda queremos superar uns aos outros e provar nossa superioridade. Individualistas que convivem, mas não se conhecem. Vítimas de um mal comum, solidão. O ego da humanidade anda nos topos, travestido no conceito de que amor-próprio é fundamental.
Eu só queria uma vida mais leve, lenta... um mundo menos competitivo e mais unificado, alegre, habitável, talvez com mais "cara" de Lar. Eu queria ter tempo para desfazer meus enganos e saciar essa fome de vida. Errar, acertar, aprender e, quem sabe, ainda conservar alguma inocência após tudo isso. Eu queria gostar tanto de você quanto de mim... e preocupar-me com tuas expressões tristes, em oposição a esta indiferença. Vida, eu quero mais tempo... pra ser mais gente. Me reconstrói. Eu queria ter amor. Simples, desmedido, salvador. 


Raquel Barroso

Nu


Que será isto senão meu inconformismo traduzido em lágrimas...
Meus olhos não as detêm
Não o podem
São supremas
Registram em meu semblante
O conflito que tento esquecer
Vagam soberanas, escorrem salgadas
Enxugo-as em segredo
Estas recolhem-se,
De tão amordaçadas no lenço já úmido
Guardo-as instintivamente
Minha fraqueza mais explícita
Eu, NU, observado pelo mundo
Visto-me num impulso,
Cubro-me de moldes
De olhares estou salvo,
Estes não me penetram,
Não podem tanto
Testemunhas caladas,
não podem ver
Só o lenço relata,
agora ressequido,
o que se passa
Não avistam minha desgraça
Estou NU,
mas ninguém sabe.


Raquel Barroso

Coração tem memória


Uma vez me disseram, na confusão de sensações que me invadiam, que tudo que vivemos intensamente permanece inabalável num local de fácil acesso, onde nos refugiamos quando tudo parece tristemente impregnado de realidade.
Voltar no tempo seria a solução da maioria de nossos problemas: fazer o que queríamos ter feito, amar a quem queríamos ter amado, falar tudo que calamos. Mas o tempo não volta, as chances não se repetem, pelo menos não da mesma forma, com a mesma magia, com a mesma confiança de outrora, com o mesmo aval do destino. 
As mudanças, tão drásticas, tão dolorosas, nos tornam adultos e cientes de que não podemos sonhar como antes...
O tempo passou, não conseguimos detê-lo, as transformações consolidaram-se. Olhamos em volta e percebemos que crescemos, que agora temos o peso da responsabilidade, a exigência do acerto, as oportunidades restritas, os amores contados, os sonhos perdidos. Experimentamos a dor, suportando-a como achamos que nunca conseguiríamos; perdemos o orgulho e a vaidade, na certeza de que “nunca dizer nunca” é o dito mais verdadeiro que existe. E, de repente, nos tornamos saudosos do que era tão profundo, tão real, tão alcançável então, mas nós simplesmente não o sabíamos assim.
É um sonho distante, amedrontado por possibilidades remotas, pelo medo do erro, pela covardia de quem achou que seria mais sábio se deixasse a vida correr sem correr atrás dela... E esse segredo tão íntimo, tão preso a fios do passado, tão descrente de tudo, tão esquecido e tão lembrado, evocado em momentos de fuga e nostalgia, nos deixa a solene resposta de que, ainda que tudo nessa vida passe, um tempo antigo, um tempo porvir, um tempo agora... O coração tem memória.


Raquel Barroso

Desassossego


Veja bem - não há nada aqui que não me denuncie. O coração aos pulos, o organismo indisposto, a ânsia aparente, a fraqueza constrangedora. Tudo à mostra. Claro e simples como se vê.
Há o passo, o labirinto, o descompasso. Há a certeza de um caminho ondulante, de um pensar e sentir solitário. Há a consciência de que é preciso mudar, agir... Mas há algo inominável que nos prende no mesmo lugar.
O conceito de efemeridade não foi dado a todos. A dádiva do esquecimento, do desprendimento, premiou alguns e esqueceu de muitos. É admirável (e teatral) o sorriso pós-guerra de quem ri ainda que com o interior aos prantos.
Não possuo a frieza de quem se basta, tampouco o escárnio das coisas do mundo. Eu gosto do mundo, ainda que às vezes também o despreze, mas meu desassossego não me deixa esquecer que faço parte dele, firme e presa ao chão, feito raiz.
Não, não acredito em onipotência. O amor-próprio, isoladamente, não enternece a alma, não abranda a chama, não cultiva a existência. Os outros não são apenas os outros, são necessários.
Há uma humanidade indisfarçável que me rege: o saber de não ser sozinha, a necessidade de ter e partilhar dos demais, insaciavelmente, com fome de amor e sede de reciprocidade.


Raquel Barroso

Já não sei


Queria ter inspiração
Mas tudo denuncia que...
Ando louca
Muito fora de mim
Jogando pela janela
As cores do meu quarto
O resto de luz deste lugar em penumbra


Toda essa consternação
Insinua que minha loucura
Será perdoada
Porque ela vem de quem perdeu o norte
Perdeu o porte
E talvez já nem suporte
O cheiro de mofo dos baús da coerência
Das coisas arrumadas
Dos fios aprumados onde se posa de equilibrista


Odeio agora a simetria do que é correto
Do que é justo, do que está posto
Faço curvas nas retas nas quais
Tracei meus rumos e prumos até então
Transpiro a fadiga das pessoas todas
As exaustas.
As que não se vêem, mas que, como eu,
sentem-se loucas.
Pessoas que rompem seus limites
E gritam
Porque há coisas que só o grito pode dizer.


(Proclamo aos quatro ventos
Que tudo que eu era antes,
já não me serve mais...)


Raquel Barroso

Frio


Sinto frio.
Não o frio que arrepia a pele ou enrijece o corpo
O frio que faz
Parece fazer só a mim
E não me permite escolher.


Esse frio me devora o peito,
Me proíbe questionamentos ou
O acalanto de qualquer explicação
Repousa suave, perene
Numa tortura
Que fere devagar e que parece ser
A única coisa que me pertence.


Ninguém o percebe,
Ninguém parece se importar
Meu frio me congela os passos,
Mas conserva o coração pulsante, latente.
Meu frio você não conhece,
Só sente que me dói ao te ver passar.


Frio meu
Devorador de mim
Consolador de mim
Insaciável em sua fome de mim.


Eu,
Que em meu tudo de frio,
Ainda procuro um calor que não é meu,
Nem pra mim
Calor que vem de ti.


Raquel Barroso

Recomeço


Fim de dia. Contrariando meses de contínuos lamentos, as coisas parecem aquietar-se diante de uma paz que surpreende e que há muito não era possível. Que mistérios cercam a nossa incapacidade de enxergar além de nossas dores? Como se explica a alegria repentina, a esperança que chega sem aviso, que se instala ali, integralmente, expulsando a negatividade a que é tão fácil acostumar-se e que nos faz perguntar: por que não foi possível nos curarmos antes?


Paro inconformada com a diferente sensação, sinto o coração descompassado, um tanto afoito de vida e sem saber por onde começar. Recomeços não são fáceis, não são fatos que podemos constatar como naturais… Há o medo do novo, a angústia que se alia ao pavor de desenvolver novas dores. Entretanto, parece inevitável aceitar o que está por vir, parece natural se deixar envolver, se permitir sonhar, desenvolver os sentidos, aguçar os instintos. Torna-se perfeitamente aceitável mergulhar em devaneios, imaginar situações, andar saltitante pela casa, numa harmonia estranha, porém absoluta.

Quanto tempo foi necessário perder? Quantas lágrimas, quantas noites de ansiedade mordaz, quantas perguntas sem respostas? Surge a constatação de que o sofrimento nada mais é que uma escolha errada que fazemos, uma resposta aos nossos passos em falso, às nossas apostas egoístas, à nossa teimosia, à nossa insistência em cultivar a infelicidade. O mundo aí está repleto de sentimentos inexplorados, histórias não contadas, corações a serem preenchidos. Há espaço para quem o procura, só não se pode esquecer que a busca por si próprio é determinante antes de procurar encontrar outro alguém. Passamos a entender que nossas cobranças são infundadas, nosso desespero é dispensável, nossa amargura envenena a nós mesmos e nossa dor não deve ir além do que já doeu.

Compreendemos que nossa paz interior existe no aconchego de nós mesmos, na experiência de quem já sofreu e fez sofrer, na humilde aceitação de que há sempre algo a melhorar. E, então, nos parece fácil entender que o amor veste-se de possibilidades, refaz nossos conceitos, nos faz surpresas e nos presenteia, quando finalmente o aceitamos do jeito que é, quando vier, e com toda a serenidade que for necessária.


Raquel Barroso

Meus novembros...


Eu sinto sua falta. Aliás, não sei bem se de você. Eu sinto falta de alguma coisa que se perdeu no meio do caminho sem que eu tivesse tido a oportunidade de escolha, sem que percebêssemos o desfecho inevitável das separações.
Acho que sinto falta do que poderia ter sido, do que deveria ter sido, do que, para meu próprio pesar, não foi. Eu sinto essa falta há muito tempo, tempo que me parece infinito. Tempo que foi desde sempre. Mas que não quero eterno. Eu sinto sua falta e sei que você não sente a minha. Sei e demorei pra aceitar. Sei e acho que nunca aceitarei completamente. Eu sei que precisei do teu colo, sei que ainda preciso, sei que não o tenho. Eu sei que isso me marcou, ainda que jurasse que não, ainda que vestisse um sorriso de ‘tudo bem’, ainda que quisesse acreditar numa reviravolta da vida. Ela nunca aconteceu. E eu sei. 
Eu sei que você não teve tempo de me amar, de me olhar, de me conhecer, de abraçar minhas dores e alegrias como suas. Coisas que pais e filhos dividem, coisas que você divide com os seus. Coisas que me faltaram. Eu sei que eu quis, eu quis muito te chamar de meu, quis muito ser sua. Quis e achei que podia, já que nasci por sua causa, já que estou aqui também por mérito seu. Eu quis um amigo, um amigo que de mim soubesse, um amigo que me segurasse, um amigo que me desse a mão. Eu queria o carinho, eu queria a preocupação, eu queria a proteção. Eu queria ser igual, queria ser linda aos seus olhos, queria que você me olhasse, que você me enxergasse, que você me buscasse. Eu queria que você me amasse. 
Eu sei que talvez não seja possível, sei que talvez seja esse o revés que a vida me trouxe, sei que talvez seja esse o aspecto que eu tenha de encarar para crescer. Eu sei de tudo isso, mas, numa hora dessas em que a dor e a ausência tomam conta, eu só sei que eu queria um Pai.

Raquel Barroso